Ensinar a ler literatura dentro do contexto escolar não é
uma tarefa fácil. Exige técnica e sensibilidade, experiências que procuram escavar sentidos de uma obra. No âmbito da escola pública de periferia, território que oprime nossas crianças e jovens pelos flagelos sociais que enfrentam, ler literatura é um desafio ainda maior, pois o trauma da falta acaba, muitas vezes, emudecendo
nossa experiência perante o mundo.
Porém, são nestes ambientes que imaginar se faz ainda mais
necessário, e a palavra literária, mais ainda, pois é ela quem revela novos sentidos para nossa existência, nos concede, democraticamente, uma voz a ser ouvida.
Hoje, na escola, fiz a mediação de leitura do livro “Dois
passarinhos”, livro de imagem do ilustrador colombiano Dipacho, publicado pela Pulo
do Gato, editora parceira do Descobrinhança.
De início, apenas disse aos alunos que se tratava de um livro com uma “característica”
diferente daqueles que conheciam, mas não disse qual era. E, para minha
surpresa, só depois da leitura foi que uma aluna veio dizer
que descobrira o que era “diferente” nesta história.
A ação da narrativa visual se estabelece entre duas
personagens – dois passarinhos, um preto e outro branco – e em torno de uma
árvore, cujo caule fica centralizado na divisão das páginas duplas. As
personagens vão trazendo vários objetos para os galhos da árvore, numa
competição (palavra muito usada pelos alunos), até que a planta não se sustenta
e seus galhos acabam caindo. Resta, ao final, os dois passarinhos, de costas um
para o outro, na beirinha do toco que restou dos galhos caídos.
“Dois passarinhos”, na leitura dos meus alunos do sexto ano,
é uma narrativa cujo tema social se sobressai aos elementos internos da narrativa.
Em seus comentários pós-leitura, surgiu muito a questão da ganância das
personagens por quererem ser mais do que o outro e da acumulação de coisas por
acumular. Alguns relacionaram os passarinhos e árvore como símbolos (eles ainda
não conhecem o que é metáfora) da ação humana contra a natureza, citando como a
acumulação indevida acaba gerando lixo e destruindo a natureza (poluição e
desmatamento foram temas sociais citados).
Acredito que o termo “consumismo” não tenha
vindo à tona porque o ato de consumir, nesta comunidade, tem a ver com a subsistência
de suas famílias, sendo assim privadas de privilégios materiais.
Foi trazido, também, o caráter irônico das imagens de
Dipacho, pois, ao verem tantas coisas sem sentido algum acumuladas, os alunos
riram, à medida em que mediava a leitura para o grupo. Outra sensação revelada
pelo grupo foi de tristeza ao ver os galhos da árvore desmoronarem.
Ao perguntar de que
forma tinham lido um livro “sem palavras”, as respostas vieram carregadas de
caráter imaginativo: cores, formas, desenhos foram moldurando no pensamento a
história que lhes fora contada. Isso revela que, apesar daquilo que o mundo tira destas crianças, há algo que ninguém lhes pode tirar: vida imaginária. A experiência de hoje revela que a literatura
tem o poder de povoar nossa imaginação, seja com palavras e imagens, para que
possamos nos identificar com experiências diferentes da nossa, e ao mesmo tempo, tão parecidas.